
Ouvi dias atrás uma entrevista de Benedito Rui Barbosa, nome que se insere entre os autores de telenovelas mais conhecidos no País e até no Exterior, por conta das histórias que criou. Respondendo ao ator Antônio Fagundes, que lhe perguntava sobre processos de criação, disse algo sobre o qual fiquei refletindo: ‘Se você tem uma história, é assunto para conversa; se tem duas, para várias conversas; se tem mais de três e gosta de contá-las, é um escritor em potencial.’
Existe algo de verdade no que diz Benedito, sobretudo porque ele deve ter pensado em termos de realidades que alçam o nível da ficção. ‘Nada nasce do nada’, disseram os romanos acompanhando o filósofo grego Parmênides. Ainda que inusitada ou bizarra toda história tem sua gênese em algum ponto factual captado pelo autor. Por outro lado, é um pouco simplista acreditar que basta repertório para garantir enredo atraente. Na teledramaturgia, imagens e bons atores contam tanto quanto enredo e diálogos, mas na literatura o processo é diferente, exige sensibilidade, competência, expertise com léxico e sintaxe.
E se é fato que todo escritor guarda histórias dentro de si, um dia elas saem do lugar onde estavam alojadas e, ganhando corpo através das palavras, concretizam-se em literatura. Talvez imbuída dessa certeza, a escritora Regina Bastianini transcreve na apresentação do recém lançado ‘Giovanas’, de Giovana Mara Ferreira, dois versos da poeta Eny Mendonça de Miranda: ‘Palavras são traços-lâmina/ De ferir e de curar’. E complementa: ‘Os versos de Eny traduzem bem a simbiose de ‘Giovanas’- menina-mulher que expressa as experiências da profissional da saúde- em busca de alívio para dores do corpo- e agora a voz da também estreante no trato com as palavras, buscando alívio para as dores da alma. O texto é farto em palavras que, ao longo da vida, a feriram impiedosas, mas lhe ensinaram o princípio ativo para a sanidade.’
Já na capa que ilustra acima esse comentário o leitor perceberá a pluralidade de faces a serem reencontradas nos 25 textos que compõem o livro, coletânea de relatos independentes mas interligados pela onipresença da autora-narradora-personagem. Afinal, a obra é uma biografia. Os desenhos, que lembram a arte do bico de pena mas talvez tenham sido executados com bic escrita fina, são bastante expressivos ao mostrarem rostos femininos caracterizados por penteados diversos e suave expressão de alegria. Por aí, pelo ar de descontração perceptível nos traços de bocas levemente sorridentes, ao receber um exemplar das mãos do escritor Luiz Cruz de Oliveira, numa das nossas reuniões na AFL, perguntei-lhe se seria aquele um livro marcado pelo lirismo. Ele me respondeu: “Não. É um soco no estômago.’
A leitura que eu faria nos dias seguintes confirmaria em parte a opinião do estudioso da literatura brasileira, pesquisador da obra de escritores francanos e autor da orelha de ‘Giovanas’, onde afirma sobre a obra: ‘reúne flagrantes variados da vida, ressaltando, em em preto e branco, muito da criatura humana. No centro do , está a fotografia de corpo inteiro da autora’.
Giovana Mara Ferreira se perfila em textos breves como filha, neta, irmã, sobrinha, cunhada, tia. Mulher. Gestante. Mãe. Criança menina adolescente jovem adulta. Solteira, namorada, casada. Separada. Amiga colega aluna discípula professora. Profissional da saúde. E paciente de males terrivelmente devastadores, entre eles a decepção de se ver traída depois de anos de um casamento bem sucedido. Ao escrever crônicas que parecem contos e contos que semelham crônicas, a narradora mostra como, ao longo da vida, desempenhou seus papéis com coragem, aceitando as dores inerentes a toda existência, permitindo-se sofrer mas mantendo a capacidade de perdoar, imbuindo-se aos poucos da consciência de que a vida é o momento e toda presunção de controle é empáfia.
Não há linearidade na apresentação dos escritos, o que não impede a visão clara de um mosaico de muitos azulejos onde cada peça exibe acontecimento completo em si mesmo. São muitas as Giovanas que emergem de relatos de títulos expressivos como ‘Gênesis”, ‘Feridas’, ‘Lar’, ‘Traição’, ‘Negro’, ‘Outonos’, ‘Apocalipses’ e outros, todos fotografias de um instante de emoção máxima, instantâneos fixados pela memória depois de filtrados pelo coração.
Sob o aspecto do estilo, este é marcado por comparações (‘Minhas roupas sempre foram medíocres, todavia eu insistia em acumular muitos sonhos no guarda-roupas de minha inocente ilusão’ (‘Lar’); ironias (‘Muito sistemática e incompreensiva, mamãe brigou com papai somente porque ele ficou sumido por duas semanas no final de sua gestação’(Tantã); metáforas (‘A sensação era de um ato cirúrgico, o bisturi da traição cortava a epiderme, rasgava minha carne, ulcerava minha alma sem nenhum anestésico para amenizar a dor’ (‘Traição’). De vez em quando emerge peculiar senso de humor como em ‘Raúla’, onde se conta a história de um ‘gato de três cores’ que se descobriu gata, razão para se levar o masculino ‘Raul’ para o feminino: uma brincadeira com a palavra.
Quanto aos temas, muitos têm mesmo o efeito de ‘um soco no estômago’, como os definiu Luiz Cruz. É impossível não se indignar diante da descrição que remete a narradora a um fato acontecido quando tinha nove anos: ‘Certa feita, em um desses banhos, decidi encarar meu fantasma de frente. Firmei meus olhos e observei que ele era muito conhecido e me observava há muito tempo, não com olhar de pai, mas infelizmente como um animal faminto esperando o momento oportuno de atacar a presa (‘Feridas’). E não há como ler imível a narração de fato marcado pelo racismo em ‘Pedras’: ‘Permaneço não gostando de roupas estampadas e continuo sentindo um medo enorme desse povo de bem. Então chamo por Zumbi! Exclamo Alforria! Peço liberdade dos grilhões que ainda me acorrentam mesmo ados cinquenta janeiros’.
Mas nem tudo são pancadas.
Há veludos em ‘Princesa’, perceptíveis na forma como a narradora conta sobre a formatura da filha: ‘(...)brindamos as conquistas de uma menina flor, filha de uma ex-técnica de enfermagem e um ex-carteiro, neta de sapateiros e um peão de obras, bisneta de escravos que lindamente libertou-nos dos grilhões da ignorância através de suas conquistas e nos enche de orgulho todas as vezes que deparamos com a doutora Inaê salvando vidas.’
Há restauros que se percebem especialmente em ‘Apocalipse’, quando Giovana Mara Ferreira, fazendo um balanço de seu meio século de vida, escreve: ‘Nesses cinquenta anos, fui me refazendo, juntando todas as células, ossos, músculos, veias, artérias, linfas, órgãos e pele’.
Há esperança na consciência de que a escrita literária pode ser terapêutica, reconhecimento que a autora faz na contracapa do livro: ‘Escrevendo ‘Giovanas’ fiz as pazes com a vida e comigo mesma’.
Este é o primeiro livro de uma escritora que apenas começou a contar suas histórias. Seus traços distintivos, já se percebe, são a coragem de se expor para mostrar a vida-como-ela-é e o uso das palavras na sua potência máxima para comunicar, comover e inspirar.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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